Princípios Gerais

As questões sociais, interessando principalmente as classes proletárias, são hoje de palpitante actualidade em todos os povos cultos. (...) Uma dessas questões e da maior importância é a que se destina a conseguir a construção em grande escala de casas económicas, com todas as possíveis condições de conforto, independência e higiene, destinadas principalmente nas grandes cidades aos que, por carência de recursos materiais, têm sido obrigados até agora a viver em residências infectas, sem luz nem ar, e por isso gravemente nocivas à saúde dos que as habitam. 

Preâmbulo Decreto n.º 4.137, Diário do Governo n.º 87 I Série, 25 de Abril de 1918


A história da concepção e realização das políticas públicas de habitação em Portugal desde 1918 - o seu momento fundador - é, em larga medida, a história da urbanização do país e da edificação dos seus principais centros urbanos. A definição do ambiente construído urbano de Portugal nos séculos XX e XXI decorre muito significativamente do lançamento e concretização ou fracasso de iniciativas públicas - pelo Estado, pelos municípios, por outras entidades do âmbito público -, com ou sem participação privada, dirigidas ao alojamento de populações dos diversos estratos da sociedade e especialmente das de menores recursos. Um percurso por cem anos de habitação de promoção pública em Portugal permitirá, assim, abrir novas perspectivas não apenas sobre o modo como sucessivos regimes e governos responderam àquele requisito essencial do equilíbrio social contemporâneo - tornando aparente a assinalável variedade de ideologias e matrizes civilizacionais ensaiadas - mas também sobre a forma como as cidades e vilas portuguesas se expandiram e consolidaram em função de sucessivos (e por vezes contraditórios) modelos urbanos, arquitectónicos, culturais e sociais.

Pretende-se então aqui evidenciar o impacto de cem anos de promoção pública de habitação no tecido edificado português, de modo a tornar clara a importância desta acção para a qualidade do ambiente construído urbano nacional - as cidades e vilas portuguesas, onde vive uma parcela importante da população. Por outro lado, o foco colocado no papel do Estado - sem dispensar a referência a outros agentes de relevo - informará a apresentação das principais linhas de força da sua acção, dos grandes ciclos de política, filosofia de intervenção e organização administrativa seguidos, e da posição relativa (variável) assumida pela questão habitacional no governo de Portugal, ao longo do período.

Os dois grandes argumentos acima enunciados - o impacto urbanistico - arquitectónico da construção de alojamento económico e a expressão de filosofias de poder e governo públicos através da promoção de habitação - serão comunicados, num primeiro nível, segundo seis grandes momentos ordenados cronologicamente, correspondentes, como seguidamente se detalha, a períodos ou ciclos importantes e balizados pelas principais inflexões encontradas no caminho seguido pelas abordagens à questão da habitação apoiada. Esta linha cronológica, baseada antes de mais em desenvolvimentos legislativos, políticos e administrativos, será pontuada por estações temáticas, nas quais temas transversais ao período, ou próprios de um dado momento, serão colocados sob prismas particulares, seleccionados em função do tema. Tais estações, libertas do espartilho cronologico-administrativo e apoiadas em leituras de raiz arquitectónica, sociológica, antropológica, construtiva e tecnológica ou da cultura material, serão dedicadas a temas como, por exemplo: 'higiene social' e moralidade no problema da habitação económica; família, género e classe nas soluções arquitectónicas para a casa económica; o realojamento em habitação apoiada periférica como requisito para a realização de operações de renovação (limpeza/valorização) de malhas urbanas consolidadas (ex. Mouraria/Socorro, ilhas do Porto); os centros públicos de produção de conhecimento sobre habitação em Portugal e seu posicionamento no contexto europeu (ex. Gabinete Técnico de Habitação CML, Gabinete de Estudos de Habitação DGSU, Núcleo de Arquitectura LNEC); a habitação apoiada e os centros urbanos de pequena dimensão, especificidades e impacto (ex. Olhão); os protagonistas, famosos e desconhecidos (ex. Raul Lino e Eugénio Correia, Pedro Teotónio Pereira, Ruy José Gomes). 

Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas em Portugal recorrerá, tanto na sua macroestrutura cronológica quanto no desenho dos episódios temáticos referidos, à apresentação de exemplos concretos de intervenções, projectos (concretizados ou não) e obras, equilibrando casos mais conhecidos com objectos inéditos ou largamente ignorados, típicos ou atípicos de determinado momento: esta será uma oportunidade para ampliar o universo arquitectónico e urbanístico já mapeado, completando ou questionando perspectivas existentes sobre os diversos programas lançados, e para abrir novas linhas de investigação e reflexão futura. Recorrer-se-á de igual modo à apresentação pontual de dados estatísticos e números totais (ex. fogos planeados e construídos ao longo do período, idem por programa, promoção pública vs. promoção privada, habitação e população nos censos), os quais informarão visões panorâmicas de larga escala, necessário complemento à micro-escala das iniciativas e actores.